
O aroma favorito.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.
[...]
Insônia - Álvaro de Campos.
Quando a criança era criança
andava balançando os braços
e não sabia que era criança
queria que o riacho fosse rio
que o rio fosse torrente, e poça d’agua, mar
e tudo era cheio de vida
e a vida era uma só.
Quando a criança deixou de ser criança
o mar já se transforma em rio
e o rio em poças e as poças em gotas d’agua
e as gotas d’agua no vento seco do deserto
e desapareceram as asas e houve o regresso
ao único átomo e suas derradeiras partículas
e a criancinha loura então aprendeu a dançar.
E quando a criança não era mais criança
ficou imóvel com os braços e o sorriso
e não acreditou mais que o riacho era rio
e o rio torrente e a torrente era o mar
e viu que nem tudo era cheio de vida - e também
que já tinha hábitos e opiniões e sabia dançar
e a vida, enfrentando-a, não era uma só
e já não havia mais nem asas nem a magia do tempo.
Álvaro Pacheco, in Asas de Criança.
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Arte de Kelly Vivanco.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.
"Quando eu estiver contigo no fim do dia, poderás ver as minhas cicatrizes, e então saberás que eu me feri e também me curei".
Tagore
Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.
Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.
Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,
eis-me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem isto.
- Sonetilho do Falso Fernando Pessoa
Carlos Drummond de Andrade
In Claro Enigma, 1951.
Figura: Pessoa por Almada Negreiros
Causava-lhe estranheza e até certo desprezo, quando percebia nos outros uma carência “naquilo”... Aquilo que não existindo, era para ela como não ter uma orelha ou uma perna... que em seu entendimento se tinha naturalmente, era como peça original de fábrica. Para ela não era motivo de preocupação, nem de dispêndio de energia ou esforço. Exauria-lhe, ao contrário, ficar ouvindo as queixas alheias sobre esta baixa e os queixosos por vezes não acreditavam nela ou tomavam-na como arrogante, quando afirmava nunca ter sentido tal ausência. Afirmava nunca ter...
E passou tanto tempo sem precisar lidar com a não existência do “buraco”, que quando aconteceu do buraco se abrir, ela foi engolida por ele... era para ela, terreno há muito (todo) tempo desconhecido.
O curioso é que o que iniciou a abertura do buraco foi estar diante da materialização personificada de um conjunto enorme de características humanas, que até então ela julgara como ideais ou próximos do que com muito descuido se chama de perfeição.
A utopia em forma de gente, germinou nela a inédita dúvida sobre todas as certezas que sempre tivera sobre si mesma. A criatura, a perfeição inventada, talvez fosse nada mais que a projeção dela mesma ou do que apreciaria ter como seu... e vendo existir, fora de si, de carne e osso, ficou escancarado que o que ela julgara ideal durante tanto tempo, era muito diferente do que verdadeiramente via no espelho todos os dias... Foi assim que se deu o (des)encontro.
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"Minha solidão não tem nada a ver com a presença ou ausência de pessoas… Detesto quem me rouba a solidão, sem em troca me oferecer verdadeiramente companhia….” - Friedrich Nietzsche
Pintura: Edgar Hilaire Germain de Gas / Edgar Degas - Before de Mirror 1885 - 86.
Uma das notícias mais faladas na internet nos últimos dias, trata sobre a empresa espanhola que está lançando rolos de papel higiênico com trechos de clássicos da literatura mundial. O argumento do empreendedor da idéia, é levar os livros aos banheiros, para aproximar a literatura das pessoas... (???)
Perdoem meu jeito conservador de ver a coisa, mas será que ninguém consegue pensar em algo com um pouco mais de bom gosto para incentivar a leitura?
A intenção - e somente ela, olhando bem lá no fundo, com muito esforço - pode até não ser de todo má, mas a idéia prática final é tosca e de certa forma, desrespeita e ridiculariza a literatura.
Imagine só o orgulho dos autores em saber que as pessoas estão limpando a bunda com suas obras!
Alguém realmente acredita que quem nunca teve gosto pela coisa, vai adquiri-lo justamente desta forma... sentado em casa, no seu "aconchegante" vaso sanitário???
Quer apostar que se essa moda pegar, provavelmente será com aquelas pessoas que já possuíam o hábito de ler este tipo de livro e que o rolo de papel higiênico vai virar é peça de colecionador, indo parar novamente na estante?
E o resto da população, que segundo o brilhante criador desta idéia, seria o público alvo, não vai fazer nada mais do que CONTINUAR cagando para a literatura....
Imagem: site da BBC BRASIL.
A paixão nos engaja numa difícil experiência do infinito. Como se sabe, ela tende ao “fazer-um-com-o-outro”, à metade perdida do hermafrodita de Aristófanes, à continuidade de Georges Bataille. Mas esta unidade se revela impossível, pois o permanente tender a um, o movimento constante em sua direção, o élan insofreável ruma para o que, contudo, não cessa de furtar-se. A paixão nos dá assim da unidade o vislumbre, talvez mesmo a doce ilusão, mas nunca o descanso, a satisfação plena. É aí que os apaixonados descobrem-se submetidos a compulsórias compulsões. Surgem as figuras do infinito. Falar ao telefone com a pessoa por quem se está apaixonado e, ao desligar, não importa depois de quantas horas de conversa, querer imediatamente ligar de volta. Sofrer uma espécie de ansiedade sem conteúdo quando da ausência dela. Mesmo na presença dela sentir como que uma estranha falta – a falta do um -, que o sexo busca a todo custo preencher. Vem daí também a figura do “eu te amo”, incansavelmente repetida no discurso passional. É que “eu te amo” ultrapassa seu significado à pura vazão: “eu te amo”, repetido inúmeras vezes, é o modo de a linguagem tender ela também ao infinito, tendência por repetição, como se a compulsão pudesse finalmente franquear o um. Se “eu te amo” fosse da ordem da comunicação, os amantes ficariam entediados logo na segunda vez que se pronunciasse a expressão. Mas não: “eu te amo”, no contexto da paixão, não sofre redundância, antes, pelo contrário, é surpreendente a cada enésima repetição, pois traz em si o vislumbre do um, sua promessa.
Se a paixão, mesmo quando recíproca, é uma experiência estruturalmente difícil (embora maravilhosa, e para muitos compensadora, pois a intensidade erótica e afetiva vale cada segundo de ansiedade), quando não correspondida, torna-se, todos sabemos, insuportável. Mas não me refiro aos casos em que alguém se apaixona e o objeto da paixão não corresponde de forma nenhuma. Ou àqueles em que um dos dois apaixona-se inadvertidamente, e o outro, que até manifestava certo interesse, perde-o de todo, pois o sujeito apaixonado, com sua demanda infinita, sofre uma brusca desvalorização aos olhos do outro, não-apaixonado. Estas situações são claras e, embora dolorosas, diante delas não resta outra coisa senão desapaixonar-se. Situação diferente é aquela em que um dos dois apaixona-se enquanto o outro ama, deseja, porém com medida, sem se apaixonar. Experiência dificílima para o apaixonado, pois configura uma impossibilidade espacial: o infinito não se compatibiliza com o finito, por maior que seja este amor – com medida, sem apaixonar-se, não se engaja no infinito, com todos os seus sintomas. E quem está apaixonado, por sua vez, não pode demandar do outro, nada menos que infinito. De nada adianta que o outro telefone, que demonstre desejo, até mesmo amor. Diante do infinito, toda medida, mesmo grande – é nada. Trata-se de uma questão matemática: relativamente ao Universo, a distância entre a Terra e o Sol é nada.
Dessa impossibilidade contingencial (a impossibilidade estrutural da paixão é o tender ao um impossível) decorre um acontecimento terrível. O apaixonado torna-se um chato, como se sabe, mais de uma espécie muito particular de chatos. Quem é familiarizado com os personagens de Dostoievski já se deu conta de que muitos deles têm esse traço exasperante: agem errado, sabem que estão agindo errado, e mesmo assim agem errado infinitamente, até a humilhação. Basta ler, por exemplo, Notas do Subterrâneo. Aí se encontra o que se pode chamar de uma chatice trágica. Sim, pois o que redime, da perspectiva do próprio chato, a chatice... é a ignorância de sua condição. Mas os chatos dostoievskianos são trágicos precisamente porque lúcidos. Sabem que estão agindo errado, que estão se afundando, mas mergulham no erro infinitamente. Chatice e lucidez é trágico, pois sofre-se duplamente: pelas conseqüências dos atos e pela nítida percepção, antecipadora, que se tem delas. É claro que os personagens de Dostoievski, agem assim porque são... passionais. Quando a paixão é recíproca, o fato de os dois amantes estarem engajados no infinito elimina em ambos o risco da chatice trágica, já que os dois desejam a demanda infinita um do outro; mas basta que o infinito tenha que medir-se com o finito, que a desmedida tenha que conviver com a medida, para que um desequilíbrio fundamental se instale e, com ele, o papel de personagem de Dostoievski que, inapelavelmente, o apaixonado tem que vivenciar.
O que podem fazer estes apaixonados que se vêem subitamente presos nas páginas de um romance russo? Procurar dar-se, talvez, alguma medida? Mobilizar a vontade contra o desejo? Empresa árdua, uma vez que se trata de uma guerra desigual – quase uma covardia -, e também porque não se abre mão da desmesura assim tão facilmente, já que nela o que está em jogo é o vislumbre do um, a promessa. Como no samba-canção de Caymmi: “não tem solução”. Mas passa. Tudo passa. E até mesmo, trágico maior, a própria vida: como diria o poeta, “de resto, sério/só o cemitério”.