A paixão nos engaja numa difícil experiência do infinito. Como se sabe, ela tende ao “fazer-um-com-o-outro”, à metade perdida do hermafrodita de Aristófanes, à continuidade de Georges Bataille. Mas esta unidade se revela impossível, pois o permanente tender a um, o movimento constante em sua direção, o élan insofreável ruma para o que, contudo, não cessa de furtar-se. A paixão nos dá assim da unidade o vislumbre, talvez mesmo a doce ilusão, mas nunca o descanso, a satisfação plena. É aí que os apaixonados descobrem-se submetidos a compulsórias compulsões. Surgem as figuras do infinito. Falar ao telefone com a pessoa por quem se está apaixonado e, ao desligar, não importa depois de quantas horas de conversa, querer imediatamente ligar de volta. Sofrer uma espécie de ansiedade sem conteúdo quando da ausência dela. Mesmo na presença dela sentir como que uma estranha falta – a falta do um -, que o sexo busca a todo custo preencher. Vem daí também a figura do “eu te amo”, incansavelmente repetida no discurso passional. É que “eu te amo” ultrapassa seu significado à pura vazão: “eu te amo”, repetido inúmeras vezes, é o modo de a linguagem tender ela também ao infinito, tendência por repetição, como se a compulsão pudesse finalmente franquear o um. Se “eu te amo” fosse da ordem da comunicação, os amantes ficariam entediados logo na segunda vez que se pronunciasse a expressão. Mas não: “eu te amo”, no contexto da paixão, não sofre redundância, antes, pelo contrário, é surpreendente a cada enésima repetição, pois traz em si o vislumbre do um, sua promessa.
Se a paixão, mesmo quando recíproca, é uma experiência estruturalmente difícil (embora maravilhosa, e para muitos compensadora, pois a intensidade erótica e afetiva vale cada segundo de ansiedade), quando não correspondida, torna-se, todos sabemos, insuportável. Mas não me refiro aos casos em que alguém se apaixona e o objeto da paixão não corresponde de forma nenhuma. Ou àqueles em que um dos dois apaixona-se inadvertidamente, e o outro, que até manifestava certo interesse, perde-o de todo, pois o sujeito apaixonado, com sua demanda infinita, sofre uma brusca desvalorização aos olhos do outro, não-apaixonado. Estas situações são claras e, embora dolorosas, diante delas não resta outra coisa senão desapaixonar-se. Situação diferente é aquela em que um dos dois apaixona-se enquanto o outro ama, deseja, porém com medida, sem se apaixonar. Experiência dificílima para o apaixonado, pois configura uma impossibilidade espacial: o infinito não se compatibiliza com o finito, por maior que seja este amor – com medida, sem apaixonar-se, não se engaja no infinito, com todos os seus sintomas. E quem está apaixonado, por sua vez, não pode demandar do outro, nada menos que infinito. De nada adianta que o outro telefone, que demonstre desejo, até mesmo amor. Diante do infinito, toda medida, mesmo grande – é nada. Trata-se de uma questão matemática: relativamente ao Universo, a distância entre a Terra e o Sol é nada.
Dessa impossibilidade contingencial (a impossibilidade estrutural da paixão é o tender ao um impossível) decorre um acontecimento terrível. O apaixonado torna-se um chato, como se sabe, mais de uma espécie muito particular de chatos. Quem é familiarizado com os personagens de Dostoievski já se deu conta de que muitos deles têm esse traço exasperante: agem errado, sabem que estão agindo errado, e mesmo assim agem errado infinitamente, até a humilhação. Basta ler, por exemplo, Notas do Subterrâneo. Aí se encontra o que se pode chamar de uma chatice trágica. Sim, pois o que redime, da perspectiva do próprio chato, a chatice... é a ignorância de sua condição. Mas os chatos dostoievskianos são trágicos precisamente porque lúcidos. Sabem que estão agindo errado, que estão se afundando, mas mergulham no erro infinitamente. Chatice e lucidez é trágico, pois sofre-se duplamente: pelas conseqüências dos atos e pela nítida percepção, antecipadora, que se tem delas. É claro que os personagens de Dostoievski, agem assim porque são... passionais. Quando a paixão é recíproca, o fato de os dois amantes estarem engajados no infinito elimina em ambos o risco da chatice trágica, já que os dois desejam a demanda infinita um do outro; mas basta que o infinito tenha que medir-se com o finito, que a desmedida tenha que conviver com a medida, para que um desequilíbrio fundamental se instale e, com ele, o papel de personagem de Dostoievski que, inapelavelmente, o apaixonado tem que vivenciar.
O que podem fazer estes apaixonados que se vêem subitamente presos nas páginas de um romance russo? Procurar dar-se, talvez, alguma medida? Mobilizar a vontade contra o desejo? Empresa árdua, uma vez que se trata de uma guerra desigual – quase uma covardia -, e também porque não se abre mão da desmesura assim tão facilmente, já que nela o que está em jogo é o vislumbre do um, a promessa. Como no samba-canção de Caymmi: “não tem solução”. Mas passa. Tudo passa. E até mesmo, trágico maior, a própria vida: como diria o poeta, “de resto, sério/só o cemitério”.
Os chatos trágicos - Francisco Bosco in Banalogias.