"E me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com leve delicadeza, deixando claro em cada promessa não cumprida que nada devo esperar além dessa máscara colorida ... que me queres assim porque assim é que és, e unicamente assim é que me queres e me utilizas todos os dias, e nos usamos honestamente assim, eu digerindo faminto o que teu corpo rejeita, bebendo teu mágico veneno que me ilumina e anoitece a cada dia, e passo a passo afundo nesse charco que não sei se é o grande conhecimento de nós dois ou o imenso engano de ti e de mim ... nos afastamos depois cautelosos ao entardecer, e na solidão de cada um sei que tecemos lentos nossa próxima mentira, tão bem urdida que na manhã seguinte será como verdade pura e sorriremos amenos, desviando os olhos, corriqueiros ... à medida que o dia avança e estrutura milímetro a milímetro uma harmonia que só desabará levemente em cada roçar de olhos ou de peles, os vermes roendo esses porões que insistimos em manter indevassáveis até que o não-feito acumulado durante todo esse tempo cresça feito célula cancerosa para quem sabe explodir em feridas visíveis indisfarçáveis, flores de um louco vermelho na superfície da pele que não tocamos por nojo ou covardia ..."
Caio Fernando Abreu, in À beira do mar aberto.
Caio Fernando Abreu, in À beira do mar aberto.
2 comentários:
"que nada devo esperar além dessa máscara colorida"
forte essa.
forte?
normal, eu diria.
a vida é quase um baile de máscaras!
eu ando de saco cheio.
=)
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